domingo, 26 de dezembro de 2010


Ano Novo!



Dentro de alguns dias, um Ano Novo vai chegar a esta estação.


Se não puder ser o maquinista, seja o seu mais divertido passageiro.


Procure um lugar próximo à janela desfrute cada uma das paisagens que o tempo lhe oferecer, com o prazer de quem realiza a primeira viagem.


Não se assuste com os abismos, nem com as curvas que não lhe deixam ver os caminhos que estão por vir.

Procure curtir a viagem da vida, observando cada arbusto, cada riacho, beirais de estrada e tons mutantes de paisagem.


Desdobre o mapa e planeje roteiros.


Preste atenção em cada ponto de parada, e fique atento ao apito da partida.


E quando decidir descer na estação onde a esperança lhe acenou não hesite.


Desembarque nela os seus sonhos…

Desejo que a sua viagem pelos dias desse novo ano seja de PRIMEIRA CLASSE !!!!!


Beijos e um Feliz 2011 para todos!

sábado, 18 de dezembro de 2010

DEZEMBRO 1952_O PRIMEIRO PRESENTE DE NATAL

Da infância ela guardou quase todas as lembranças possíveis. Algumas desde os seus primeiros anos de vida, como o questionamento da vizinha que queria saber de quem ela mais gostava: do papai ou da mamãe? Ela usava um vestido de tafetá azul, tinha nos cabelos um laço de fita branca assim como os sapatos e as meias. Estava sentada na beirada da mesa e suas pernas balançavam no ar. Um grande espelho à sua frente refletia a sua imagem e a da vizinha, Dona Bel.

Seu pai e sua mãe se aprontavam para sair. Ela se lembra de como evitou olhar para o rosto da mãe. Não queria responder: sabia que gostava somente do seu pai. Dona bel percebeu sua indecisão e veio em seu socorro:

—Gosta dos dois iguais, não é, Lua? E completou:

—Os dois estão no seu coração.

Ela sabia que não era bem assim. Sabia que sua mãe também sabia a verdade sobre os seus sentimentos. Mas ainda era tão pequena... Tinha menos de dois anos de idade!

O tempo passando, ela crescendo sem direito a nada. Carinho só o pai tinha pra lhe dar e mesmo assim quando estava sóbrio e não estava trabalhando. Sem nenhuma regalia e quase sem brinquedos ouvia falar em Papai Noel. O pai todos os finais de anos recebia uma prenda no serviço que lhe era dado em forma de presente para a filha e que era um corte de tecido (chita) com o qual sua mãe lhe fazia um vestidinho. Aquele ano de 1952 seria diferente! Ela estava com quatro anos e sua mãe (que pretendia abandoná-la aos cuidados do pai), resolveu lhe recompensar levou-a para dar um passeio no centro da cidade. Pela primeira vez a menina viu as lojas enfeitadas para o natal e os Papais Noéis que vagavam pela cidade com seus sacos pendurados às costas onde se presumia que havia muitos presentes. A menina estava extasiada. A mãe deixou que ela se aproximasse de um desses homens e lhe pedisse algum brinquedo de presente. Para a menina isso era totalmente incompreensível: pedir o que, se não tinha sonhos ou desejos? Mas se espelhou numa menina que falou com o Papai Noel antes dela e pediu uma boneca com cabelo. O homem sorriu e ela se afastou dando a vez à outra criança. Como a mãe nesse dia parecia mais afável criou coragem e perguntou:

—Ele vai trazer mesmo o meu presente?

Ainda estava confusa e não sabia se tinha feito o pedido certo. A mãe respondeu que às vezes ele não conseguia lembrar de todos os endereços das crianças e o presente não chegava.

Continuaram a andar e entrar em outras lojas. A menina era toda felicidade. De repente elas param (aliás, a mãe fez com que ela parasse) em frente a uma vitrine onde havia uma pequena roda-gigante. Era uma réplica quase perfeita e ela achou interessante. A mãe insistia em aumentar a beleza e a importância do brinquedo e a menina pensou: "Será que ela quer comprar o brinquedo para mim?"

Depois de algum tempo de contemplação, arriscou:

—Compra pra mim, mãe?

A mãe a olhou sem responder e se afastaram dali.

A menina entendeu. A mãe com certeza não tinha o dinheiro necessário para comprar o brinquedo.

Em casa, tudo foi esquecido ou, quase tudo. À noite antes de dormir, a menina pensava no pedido que havia feito ao Papai Noel, na roda-gigante e em tudo o que havia visto naquele dia mágico.

Faltavam apenas dois dias para o Natal e a euforia das crianças era grande. Os adultos passavam e perguntavam:

—Já fez seu pedido à Papai Noel?

A menina dizia que sim e voltava a brincar. Na noite de natal, a mãe mandou que ela colocasse os sapatos perto da janela. A menina obedeceu sem muita convicção. Sua casa era tão pobrezinha e escondida... Será que Papai Noel acertaria o endereço?

No dia seguinte acordou com o chamado da mãe:

—Lua! Venha ver o que o Papai Noel deixou para você!

A menina correu até a janela da sala onde tinha colocado os seus sapatos e viu em cima deles havia um embrulho. Mas reparou que o embrulho não se parecia em nada com uma boneca e ficou parada. A mãe insistiu:

—Não vai abrir para ver o que é?

A menina então abriu o embrulho sem muita emoção e seus olhos se depararam não com a boneca de cabelo que ela havia pedido ao Papai Noel, mas com uma roda-gigante igualzinha a que ela e sua mãe tinham visto na loja.

No seu rosto nenhum sinal de emoção.

A mãe tentava desajeitadamente fazer com que a menina desse sinais de contentamento, e vendo que isso não acontecia, procurava alegrá-la dizendo:

—Viu, Lua? Papai Noel deve ter ouvido quando você me pediu para comprar a roda-gigante e trouxe ela para você!

Depois de retirar o brinquedo do embrulho a menina pegou o mesmo se afastou. Foi para o lado de fora da casa. Queria ficar sozinha com o seu brinquedo de Natal. Um brinquedo que ela não havia desejado, mas que estava ali em suas mãos e que serviria para o seu entretenimento.

Seus olhos se encheram de lágrimas. Do quintal olhou para o telhado da casa e para a janela (ainda fechada) sem entender direito como o Papai Noel conseguira entrar e não se lembrar do pedido que ela lhe havia feito. Ela estava quase com cinco anos, falava pouco, mas sua capacidade de compreensão era grande. Sabia que a mãe estava mentindo.
Sabia que Papai Noel não sabia o seu endereço e nem ligava para os pedidos que a s crianças pobres lhe faziam.
O tempo passou e esse foi o único brinquedo que ganhou (?) de Natal.

Apesar disso, a menina cresceu acreditando em Papai Noel e sonhando com o dia em que ele aprendesse o endereço de todas as crianças da face da Terra!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Dever de Gratidão


Belo Horizonte, ano 1950. Em uma casa muito pobre, fica órfã de mãe uma menina de dez anos. Do pai não se sabia nada. Dele, sua mãe não comentava, só dizia que ele não queria saber delas. E agora ficaram só ela e sua avó. Depois do funeral, começou a maratona à casa de parentes para saber quem poderia ficar com a menina.

Uma tia disse: “Não fico com ela, porque está ficando mocinha, e sei que terei dor de cabeça, pois tenho um filho de quinze anos. Leve-a ao meu irmão. Ele ficará com ela, pois será de grande ajuda para a sua esposa no trato da casa”. Mas, chegando à casa desse tio, a resposta veio negativa, pois ele mal podia tratar de seus seis filhos e não queria mais uma boca para dar de comer. Depois de algumas tentativas com mais alguns parentes, alguém indicou um orfanato. Sua avó, uma mulher sem recursos, analfabeta, se viu desolada ao ter que enfrentar tal problema tão difícil. Ela também não saberia para onde ir depois que deixasse sua neta no orfanato. Dependia da resposta de uma carta, que já esperava há dois meses. Encontrou uma pessoa que se interessou pelo caso, e arrumou toda a papelada para a menina ser encaminhada ao orfanato. Lá chegando sentiu seu coração apertado e sentiu o gosto amargo de suas lágrimas em sua boca. A irmã que abrira a porta mandou que esperassem um pouco, pois logo a Madre Superiora viria atendê-las. Sentadas lado a lado, cada uma com seus pensamentos, quando a menina perguntou a sua avó:

—Vó, aqui tem crianças? Ela respondeu: “Sim tem”.

—Só crianças, Vó?

—Sim, só crianças.

—Mas está um silêncio tão grande! Não é hora de dormir, pois ainda não é noite. Não se ouve correria, gritos, risos ou choro, mas se sente no ar um que de infelicidade. Eu, Vó, não quero ficar aqui! Por favor, vamos embora! Eu, juro que te ajudarei a lavar roupa para as madames, trabalharemos juntas e você vai ver que crescerei logo e poderei ganhar um pouco mais, pra nos sustentar. Mas, por favor, não me deixe aqui!

Antes que sua avó pudesse responder, entra a Madre Superiora com os papéis na mão. Ela pergunta a avó da menina:

—Você é a responsável por ela?

—Sim! A avó respondeu.

A Madre lhe explicou tudo que ia ser feito.

—A gora assine aqui. Quero lhe dizer que, quando assinares estes documentos, e saíres por aquela porta, você não mais verá sua neta e nem terá notícias. Esqueça que tens esta neta!

A menina imóvel entorpecida pela dor escutava tudo calada. Como num passe de mágica ela ouviu a voz de sua avó, dizendo:

—Então vou levá-la de volta comigo, e seja o que Deus quiser! Mas não vou deixá-la que nem um cão danado...

Estava vencida a primeira luta de sua vida, porque viriam muitas e muitas lutas.

Sua avó tinha uma filha que morava em São Paulo. Seu marido era militar e devido a isso, viviam sempre longe de todos, mas sabedora da morte da irmã, ela convidou sua mãe para morar com ela. E aceitou que sua sobrinha viesse também, pois ela só tinha uma filha. As meninas seriam criadas juntas.

Passaram-se os anos. A menina cresceu e se tornou uma moça prendada e trabalhadeira. Se casou para construir sua própria família. Poderia dizer que ela foi feliz, mas a vida não foi um mar de rosas para ela. Se tornou uma mulher forte, altiva e perseverante. Ao nascer seu primeiro filho, sua felicidade foi completa, mas logo ele faleceu. Seu mundo desabou. Mas o tempo curou o seu coração da grande perda. Mais tarde teve outros filhos lindos e com saúde. Apesar da vida difícil, ela saiu ilesa. Ao completar os seus quarenta anos sua vida foi coroada pela vinda de uma menina que ela adotou e que foi criada com muito amor e carinho.

A vida transcorreu com seus altos e baixos, como na vida de qualquer mortal.

Os filhos cresceram, casaram-se e foram viver as suas vidas. Os netos começaram a chegar.

E hoje, quando estão todos reunidos, alegres, a conversar sobre o jogo que irá ser televisionado nesta tarde, ela olha com amor e carinho para os seus familiares: flamenguistas, fluminenses, vascaínos (e o melhor de todos) seu neto botafoguense e, vem-lhe à mente a menina que seria deixada para traz, e que no entanto, graças ao coração bondoso e cheio de amor de sua vovó que a levou consigo, juntas enfrentaram e venceram todas as lutas.

Apesar de sua avó ser analfabeta e pobre, com este gesto mostrou-lhe que a maior riqueza está em nosso coração e ela hoje é feliz com sua família. Sempre que pode, eleva os seus pensamentos à Deus agradecendo por tudo que tem.

E dentro do seu coração, lá dentro do seu íntimo, bem no fundo do seu ser, ela sabe que tem o dever de gratidão para com sua vovó.

Sabe com certeza que ela está com todos os anjos no céu para desfrutar da vida eterna com Deus.

Obs: Texto escrito por uma amiga a quem muito considero e que assina:
Edêmia Luzia

Réquiem a um José comum (Primeira Parte)


Santo Antônio de Pádua - RJ – 19??

José nasceu no tempo em que o Getulismo estava em alta e a mãe desejava dar esse nome ao filho. Assim que o menino nasceu entre as parteiras e vizinhas a notícia correu:

—O fio de Maria Amáia vai se chamá Getúio!

O pai estava na roça. Saíra cedinho bem antes que os raios do sol se fizessem presentes. Deixara a mulher dormindo. E bastou que se afastasse para que Maria Amália despertasse já sentindo as primeiras dores do parto. Com certa dificuldade se arrastou até a casa da Comadre mais próxima. Todos estavam de sobreaviso e José veio ao mundo sem muitos transtornos, naquele 17 de março, uma quinta-feira e como ele costumava dizer, “véspera do dia em que se comemora a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Era uma quinta-feira Santa e disso Maria Amália nunca se esqueceu.

Tomé, (o pai) homem de poucas palavras, aguardava o nascimento do primeiro filho sem muito entusiasmo. Deixava que a mulher se encantasse e ás vezes se descabelasse com a novidade. Trabalhava com afinco sob um sol de março e estranhou quando o almoço demorou a chegar. Se distraía com a fumaça do cigarro de palha, que além de lhe dar um certo prazer, também servia para espantar a fome. De vez em quando, olhava esperançoso a curva do caminho. Mas nada do almoço chegar. E Tomé pensou:

—Será que aconteceu alguma coisa? E se o menino?... – sempre pensava na criança como sendo um menino. Não que se importasse com o fato de que nascesse uma menina. Para ele criança era tudo igual e davam os mesmos problemas, mas intuitivamente sabia que seria um menino. Aguardou que o sol esmaecesse. Antes de pegar o rumo de casa, acendeu mais um cigarro e enquanto fumava, deixou que os pensamentos fluíssem:

Sempre fora um moço tímido e calado. Desde os tempos de adolescência fora assim. Não conseguia fazer amigos e era com relutância que se achegava às moças da redondeza. Saía pouco e não gostava muito de conversar. Conheceu Maria Amália aos vinte e três anos e se apaixonou. Era a cabrocha mais bonita que Tomé já havia visto. E como era animada a danada! Corpo bonito, apesar de um tanto magra para os padrões da época, olhos brilhantes e um farto sorriso. Ainda agora ao lembrar, Tomé se emocionava. E os longos cabelos negros e brilhantes, amarrados em tranças, amarraram Tomé. As moiçolas negras da vizinhança, faziam de um tudo para que os cabelos crescessem, sem muito resultado. Mas Maria Amália jogava suas tranças soltas e exuberantes aos olhos encantados de Tomé. Pouco tempo depois estavam casados. Ela, com o sorriso à flor da pele e a dança incrustada no corpo. Ele, embevecido com a conquista fácil e esperando que ela se tornasse uma boa esposa. As brigas logo se iniciaram. Para Maria Amália bastava o som distante de uma sanfona, para esquecer as obrigações de dona de casa e sair em busca da diversão. Saía na sexta e só voltava para casa na segunda. Tomé se entristecia, e às vezes reclamava. Porém não era homem dado a violência e deixava que a mulher se divertisse. Os vizinhos comentavam a liberdade excessiva de Maria Amália. O tio de Tomé era o mais agoniado com a situação.

—Ô homem, vê se toma uma atitude! O home tem que domá a muié. Ocê tá envergonhando a famía!

A gravidez precoce acalmou um pouco em Maria Amália a sua sofreguidão por festas. No corpo magro os vestígios se faziam notar facilmente. E Maria Amália vaidosa como era, se entristecia com a forma arredondada que o ventre assumia. Por isso, ficava em casa. Entre o chorar de tristeza e a alegria de ser mãe. Tomé ficou satisfeito.

—Quem sabe, daqui prá diante ela sossega o facho em casa?

No fundo, porém Tomé sentia medo, ou quem sabe até um pressentimento de que as coisas não seriam exatamente assim.

Tomé chegou em casa quase ao anoitecer. Encontrou a vizinhança em festa.

—Seu fio nasceu, seu Tomé! Seu fio nasceu! O sinhô já é pai!

Entrou em casa em silêncio. Trazia no ombro a enxada com que trabalhara no roçado. Aproximou-se da cama e olhou para criança que a mãe amamentava. A casa era pequena. Ainda assim estavam presentes a parteira, um tio de Tomé e mais duas vizinhas que entusiasmados tentavam despertar em Tomé algum vestígio de contentamento.

—É Tomé. Ocê agora tem um homezinho prá criá, home! E óia que com esse nome esse menino vai longe! E o tio falava com orgulho:

—Donde já se viu um neguinho da famía dos Mello se chamá Getúio!

Tomé colocou a enxada no chão, retirou da cabeça o chapéu de palha, desfiado e empoeirado, e calmamente sentenciou:

—O meu fio vai se chamá José! Eu quero que o meu fio tenha nome de home. De trabaiadô.

Sem mais palavras, saiu em direção aos fundos do quintal onde ia tomar o seu banho rotineiro no riacho que cortava o terreno.

Todos ficaram desapontados. O tio, de rosto amarrado, saiu sem se despedir. Maria Amália chorou em silêncio.

Registro mesmo, José só veio a ter aos quatro anos. Mas o veredicto de Tomé prevaleceu. E o menino que no seu primeiro instante de vida, foi chamado de Getúlio e Getulinho, cresceu José. E de sobra recebeu também o nome de um outro tio de Tomé. Francisco. E assim ficou sendo José Francisco. José Francisco de Mello. Nome de homem, de trabalhador, como quis o seu pai.

Maria Amália, assim que se viu livre da barriga, começou a fazer planos:

—Quando o menino tiver uns três mês, eu vorto pros baies!

E todas as noites de sextas-feiras, enquanto embalava o pequenino José e ouvia o som da sanfona à distancia, ia arquitetando um jeito de voltar aos bailes. A vida ao lado de Tomé era calma, porém não era isso que Maria Amália queria. Gostava de ser paquerada, de se sentir admirada e desejada pelos homens. Sabia que era errado de sua parte, afinal era uma mulher casada. Mas a dança estava em seu sangue. Se pelo menos Tomé, lhe fizesse companhia! Mas, qual o que. Aquilo era parado demais. Nem parecia homem!

Aos pouco Maria Amália foi se reintegrando a sua vida de prazeres de finais de semanas. José ficava ora com o pai, ora com alguma vizinha prestativa. E os meses passando. Agora Tomé brigava e se aborrecia com as ausências da mulher. O menino não podia ficar quase três dias sem ser amamentado! Apesar de todos os contratempos e das brigas constantes, Maria Amália não se fazia de rogada. Os bailes para ela estavam em primeiro lugar.

Quando José completou dois anos, nova surpresa: Maria Amália estava novamente grávida. E mais uma vez ela se entristeceu e se amaldiçoou. Não queria ter outro filho para lhe atrapalhar a vida. Já bastava o estorvo do José. Prá que mais um?

Tomé de calado e tímido se tornou também um homem triste. E se já falava pouco, passou a falar menos ainda. Sofria com a rejeição da mulher pelo filho e se sentia mais triste ainda pelo outro que vinha a caminho.

E Luzia nasceu. Tomé se emocionou com a filha. Era linda e parecida com a mãe. Agora as preocupações de Tomé eram maiores. Será que Maria Amália deixaria a filha sozinha também? Afinal uma menina requer maiores cuidados.

Maria Amália logo demonstrou pela menina a mesma aversão que demonstrara por José. Para ela, os filhos eram como um castigo, pois tiravam a sua “liberdade”. A vida continuou a mesma. As crianças nos finais de semanas eram responsabilidade do pai e das vizinhas.

As reclamações e as queixas da mulher doíam fundo no coração de Tomé. E sem que ninguém suspeitasse a mágoa e a tristeza foram corroendo e enfraquecendo o seu coração até que um belo dia, ele saiu para o trabalho e lá mesmo ficou.

Alguns homens trouxeram o corpo e depositaram numa mesa na sala, com os pés prá fora, como era costume.

Mara Amália se desesperou.

—Como é que vou criá essas criança, minha Nossa Senhora?

José, nos seus cinco anos de idade não entendia direito o que estava acontecendo e se divertia vendo a casa cheia. Brincava no quintal com um galho que lhe servia de cavalo, quando alguém lhe chamou:

—Ei, menino! Venha tomar a benção ao seu pai!

José parou a brincadeira sem entender por que tomar a bênção ao pai defunto. Sabia que estava morto. Estava acostumado com a morte, que naquela época era comum entre os vizinhos. Ora uma criança, ora um adulto vítima da tuberculose. O certo é que ele sabia que o pai não responderia a sua benção, mas obedeceu. O enterro saiu e a vida deles mudou.

Se mudaram para Barra Mansa. Ali Maria Amália trabalhava como doméstica em pensões e à noite sempre trazia para casa alguma sobra de comida para saciar a fome dos filhos. A viuvez súbita e a responsabilidade maior fizeram com que se tornasse em pouco tempo uma mulher amarga. Descontava nos filhos a amargura que sentia. José era quem recebia a maior parte dos maus-tratos. Cozinhavam num fogão de lenha e José gostava de ficar olhando as fagulhas brilhantes que saíam dos galhos secos enquanto queimavam. Alguns, de vez em quando estouravam e pareciam pequenos fogos de artifícios. Numa manhã enquanto observava as chamas e luzes do fogo, José foi agredido pela mãe que além de espancá-lo, ainda o queimou com um graveto em brasa. A queimadura foi no olho esquerdo e com os gritos de dor do menino, os vizinhos acorreram e Maria Amália quase foi linchada. Felizmente a queimadura não atingiu a vista e sarou deixando apenas uma marca na pele. Luzia era tratada com mais carinho e até com um certo dengo pela mãe.

O fato do menino ser parecido com o pai fazia com que Maria Amália se revoltasse contra ele com muita facilidade. Vez por outra Maria Amália aparecia em casa com um namorado. Como residiam em um quartinho pequeno, costumava dar cachaça às crianças para poder desfrutar de uma maior liberdade com o seu homem. Certa noite trouxe para casa um velho que encontrara na estrada. Era um preto africano e andarilho de quem Maria Amália se compadeceu. Deixou que ele ficasse morando com ela e as crianças. Achava vantajosa sua companhia, pois os filhos não ficariam mais sozinhos enquanto estivesse no trabalho. O homem exigiu ser chamado de avô e passou a exercer vigilância severa sobre os dois irmãos. Maria Amália informou ao mesmo que se necessário, poderia castigar os dois. O que ela não sabia era que o homem era perverso e passou a aplicar castigos físicos tanto em José como em Luzia por coisas banais. Para castigá-los usava um arame retorcido que chamava de “bacalhau”. As surras eram constantes e eles ainda eram ameaçados:

—Se contá prá sua mãe, eu acabo cum ocês!

Algumas vizinhas penalizadas, contaram a Maria Amália o que estava acontecendo e ela mandou que o velho fosse embora. Maria Amália havia se tornado uma mulher que falava pouco, e quase sempre para reclamar da má sorte.

Aos nove anos José passou a fugir de casa e ir até a estação de trem em busca de uns trocados. Ajudava a carregar as malas dos viajantes que iam se instalar no hotel que ficava em frente. Com o dinheiro que recebia, comprava favos de mel (que nesta época era vendido em pequenos tabuleiros) e, se sobrasse algum, levava bolachas para a irmã.

Uma noite a mãe chegou em casa acompanhada de um homem. José logo o reconheceu: era o chefe da estação do trem. O homem era “preto feito pixe” e José não gostava de preto. Usava um casaco cinza e um chapéu de feltro. Dentro do bolso interno do casaco, trazia sempre uma pequena garrafa de uísque, como os atores dos filmes americanos. A mãe para despistar o filho dizia que aquele homem era seu compadre. José sabia que era mentira e ficava sempre de olho neles. Um dia o homem chegou, abriu o casaco e deu a garrafinha na mão de José. Era uma garrafinha de wisk e ele disse a José que podia beber tudo! Apesar do gosto forte, para quem já se acostumara com a cachaça, não foi difícil aceitar o wisk. Tudo isso causou uma estranha euforia no menino. Estava com menos de doze anos e já podia beber! José bebeu a metade do líquido da garrafa e dormiu como uma pedra deixando sua mãe e o homem à vontade. As visitas do homem continuaram e sempre ele levava uma garrafinha de bebida para José. Com o passar do tempo a mãe apareceu grávida. José ficou sabendo ao ouvir uns cochichos das vizinhas. Reparou então na barriga da mãe. É. Ele e Luzia ganhariam um irmãozinho ou irmãzinha. Com a gravidez a mãe trabalhava cada vez menos. José não gostava daquele homem com quem sua mãe mantinha um romance. Apesar de negro, José por ter a pele uma pouco mais clara, se julgava diferente e melhor. Era mulato e não admitia ser chamado de preto. Meses depois o novo membro da família chegou. Era um menino e tão preto quanto o pai. José olhava para aquela criança e se sentia traído pela mãe. Olhava para o irmão e pensava:

—Carvão! Fio de carvão”!

Maria Amália trabalhava pouco. Precisava cuidar do menino. Depois de algum tempo o homem deixou de aparecer e José sentiu falta da bebida. O sumiço do homem fez com que ela se revoltasse ainda mais com os filhos. As surras aumentaram de intensidade e José, já revoltado, resolveu fugir de casa. Era um menino forte e esperto, por isso não foi difícil conseguir emprego numa fazenda. Cuidava dos porcos e se alimentava do mesmo inhame que os animais comiam. Quando tinha algum tempo de folga ia até a fábrica de leite (onde entrava sem ser visto) e roubava pedaços do leite congelado. Não faltava as matinês (aos domingos) no cinema da cidade e com o primeiro pagamento recebido, ele comprou uma calça curta nova e uma camisa de “cowboy” como as do seu ídolo Lon Chaney. O tempo passava e José estava feliz. Ali na fazenda, apesar de não ter muito conforto, não apanhava e tinha liberdade para ir e vir. Já havia se passado seis meses desde a sua fuga e ele resolveu ir a uma quermesse (festa de largo) na Igrejinha da cidade. Um parque de diversões havia sido instalado e as crianças faziam festa. Ao passar correndo por entre alguns adultos, José ouviu alguém gritar:

—Óia ele ali, dona Maria! Óia lá o José!

Pronto. Estava ele de volta aos braços de sua mãe. Voltou para casa, entre abraços e beijos. Reviu a irmã Luzia que continuava calada, ou como José costumava dizer, “uma pasmaceira”. Estava com algum dinheiro no bolso e fez questão de doar a mãe. Pela primeira vez ouviu um elogio da parte dela:

—Viu, cumade como é bom, ter um fio home? Obrigada, meu fio. Deus lhe pague.

José crescia sem rumo e sem amor. O homem da estação voltou a freqüentar a casa, mas não aceitava a presença de José “que já tava virando home”. A mãe em outra opção, mandou que ele fosse morar por uns tempos em casa de um tio, em Volta Redonda. O tio Octaviano era um homem duro de coração e exigia muito de José. Ali em sua casa José aprendeu que era mesmo diferente dos primos. Todos os seus primos e primas podiam ir à escola, menos ele. Era um órfão e tinha que trabalhar. Nada de escolas ou outras regalias. José, apesar de estar já com doze anos ainda urinava na cama. Quando o tio Octaviano percebeu o que acontecia, passou a espancá-lo. Para “ensiná-lo” fazia questão de levantar durante a noite apenas para verificar se José estava molhado. Quando isso acontecia, tio Octaviano se enfurecia e arrastava José até a beira do rio que passava nos fundos da residência e o atirava dentro da água, por mais fria que a água estivesse. Depois o obrigava a dormir com a roupa encharcada.

—Tudo isso é pra ocê aprendê a sê homi!

José sofria, mas não ousava desobedecer ao tio. Aos pouco (graças aos “ensinamentos” do tio) deixou de fazer xixi na cama e como presente ganhou um par de sapatos. Estava com treze anos e era a primeira vez que colocava um sapato nos pés! José se sentia importante. O que ele ainda Ele ainda não sabia, era que os sapatos eram parte do uniforme que usaria para ir à escola. Agora José acordava cedo e ia direto para a escola. Estava contente e se sentia feliz. A única coisa ruim era a dor que sentia nos pés. Por nunca ter usado um calçado, os seus pés eram achatados e o sapato incomodava. Então, ele esperava se afastar um pouco de casa e retirava os mesmo. Amarrava os dois pelo cadarço, colocava no ombro e só os calçava quando se aproximava do colégio. As crianças que cruzavam por ele no caminho estranhavam e lhe perguntavam o motivo daquela mania. José então cheio de orgulho dizia que agia assim para não sujar e nem gastar os sapatos. Era inteligente e no primeiro ano de estudo conseguiu passar para a terceira série, no entanto a mãe precisava dele e ele precisou voltar para casa. As coisas não iam muito bem para sua mãe. O homem da estação havia sumido de novo.

José conseguiu um emprego como entregador de pão. Já de madrugada estava ele com um cesto quase do seu tamanho na cabeça, descendo uma das ladeiras da cidade em direção a um ponto distante onde o dono do armazém, nem sequer lhe agradecia. Apenas pegava o cesto lhe entregava o dinheiro do pagamento e virava as costas. José saía ainda com escuro e para chegar ao local da entrega passava por uma região onde o mato era muito espesso. Ali costumava haver assaltos e José sempre que passava por ali, ia rezando em pensamentos. Um dia, assim que acabou de descer o morro, percebeu que um homem lhe observava de dentro do mato. Fingiu não ter percebido e continuou o seu caminho, procurando andar mais rápido. O homem logo o alcançou e fez menção de lhe tirar o cesto de pão. O homem estava armado com uma faca e José se intimidou, afinal era apenas um menino de treze anos diante de um homem mal intencionado. Colocou o cesto no chão e tentou correr, mas o homem o alcançou e tentou esfaqueá-lo. Sem saber como, José conseguiu tomar a faca do homem e durante a luta que se seguiu ele esfaqueou o homem. O homem caiu parecendo não acreditar no que estava acontecendo. José viu o sangue que começava a escorrer do peito do homem, colocou novamente cesto na cabeça e correu o mais depressa que pode. O homem ainda gritou para lhe pedir ajuda, mas ele estava apavorado e só pensava em fugir dali. Chegando ao armazém, entregou o cesto e pela primeira vez deu graças a Deus pelo fato do homem não prestar atenção nele. Estava com a roupa suja de sangue e não saberia o que dizer. Saiu apressado e ao invés de voltar à padaria e entregar o dinheiro ao dono, como sempre fazia, resolveu que fugiria de novo. Só que dessa vez ele iria para longe. Iria para o Rio de Janeiro. No mesmo dia embarcou num trem com destino ao Rio de Janeiro e tratou de esquecer o incidente. Assim que chegou a Central do Brasil comprou uma camisa e um par de chinelos. Travou conhecimento com alguns meninos que vendiam doces por ali e conseguiu emprego com moradia numa casa no Méier . Era uma avenida de casas onde a senhoria fazia e vendia doces. José acordava cedo para entregar os tabuleiros de doces pela freguesia da redondeza. Sempre descalço e com pernas fortes descia e subia as ruas sem dificuldades. Ao término do serviço de entregas, sua função era lavar os tachos onde os doces eram feitos e ele se deliciava com as raspas dos mesmos. Passado alguns dias, conversou com a mulher que o havia empregado e falou sobre sua mãe, sua irmã e o irmão menor que viviam em Barra Mansa. Queria trazê-los para o Rio, mas não sabia como. A mulher então resolveu lhe ajudar: ela precisava de mais alguém para ajudá-la no serviço e a mãe dele poderia vir, trabalhar com ela e morar num dos quartos que ela alugava. José juntou dinheiro e foi em Barra Mansa para buscar a mãe, a irmã e o irmão menor. Elas vieram e ficaram morando e trabalhando na mesma casa onde José trabalhava.

Com o decorrer do tempo e depois de fazer novas amizades, José saiu dali. Foi trabalhar em obras e com o dinheiro que recebia, freqüentou uma academia de boxe onde aprendeu um pouco da luta. Gostava de fazer uso da força física que possuía e vez por outra estava se envolvendo em brigas. A bebida já fazia parte da sua vida. Bebia quantidades enormes de cachaça sem se embriagar. Isso causava certo espanto entre os colegas que não entendiam como isso era possível.

A mãe alugou um outro quarto onde foi morar com os filhos menores. José, empenhado no trabalho e nas orgias quase não a visitava. Soube que ela estava doente do pulmão e decidiu que assim que pudesse iria lhe fazer uma visita. Num domingo, acordou cedo, comprou leite, frutas e doces e se dirigiu ao local onde a mãe morava. Já fazia meses que não a via. Ela residia numa avenida de casas e assim que ele chegou ao portão foi informado por uma das moradoras que sua mãe havia morrido e já estava sepultada há dois dias. José se chocou tanto com a notícia que, ao invés de entrar para saber dos irmãos mais novos, jogou a bolsa de frutas no chão e saiu dali esmurrando todas as paredes que encontrava pela frente. A tristeza e o remorso lhe corroendo a alma e o desejo de ter agido diferente. Pobre José! Não teve a chance de ouvir dos lábios da mãe a última bênção... estava com dezoito anos e a vida precisava continuar.