segunda-feira, 8 de junho de 2009

A menina Terezinha

Terezinha faz parte das minhas lembranças de infância. Morava numa casa vizinha a nossa com uma senhora de até hoje não sei ao certo se sua mãe ou sua avó, devido a aparência que tinha. Na época eu estava com oito anos de idade e a vida se resumia em brincadeiras e estudo. Mais brincadeiras do que estudo, pois estudávamos apenas durante quatro horas e o nosso dia (apesar de menos longo que os das crianças de hoje) tinha início às seis horas da manhã e terminava inexoravelmente às nove da noite. Assim sendo, tirando-se o tempo gasto com banhos e refeições, o restante era usado em brincadeiras como casinha de bonecas, pique esconde, pique pega, pique-cola, e amais romântica que era brincar de roda onde formávamos um grande círculo e cantávamos cantigas diversas onde príncipes reis e rainhas tomavam vida. Morávamos numa avenida de casas e o nosso grupo era composto de cinco meninas todas variando entre oito e nove anos. Terezinha tinha então doze anos. Corpo de mulher e alma de criança. Ficava por momentos nos olhando do outro lado da cerca que separava a avenida de casas em que morávamos da sua casa e quando encontrava algum tempo, pulava a cerca e vinha se juntar a nós. Eu gostava daquela menina grande e de olhos tristes e bonitos. Ela com sua “experiência” de mais velha nos ajudava a organizar melhor as brincadeiras. Era meiga e isso nos cativou. Ficávamos à mercê das suas idéias e seguíamos as suas orientações. Porém alguma coisa em sua vida era diferente da nossa. Ficava conosco por pouco tempo, pois logo a velha senhora a chamava e saía correndo e ia atendê-la. Ai a nossa brincadeira tomava outro rumo. Sem a sua presença tínhamos de improvisar e dar continuidade a ação. Quando lhe sobrava um tempo ela aparecia na porta dos fundos de sua casa e de lá ficava a nos observar. Então nós fazíamos de tudo para não decepcioná-la. Era assim o nosso relacionamento com ela. Poucas palavras e aceitação irrestrita de suas idéias. Sem que houvesse entre nós nenhuma combinação, procurávamos brincar sempre no mesmo lugar para que ela nos visse, pois tínhamos a esperança de que viesse ao nosso encontro. Nem sempre isso acontecia. Às vezes ela chegava até a porta, nos olhava durante algum tempo e depois voltava aos seus afazeres. Numa dessas ocasiões, observamos que em sua casa estava acontecendo uma grande discussão. A senhora dizia coisas horríveis em voz muito alta e uma voz de homem retrucava. Terezinha estava chorando e nós todas estávamos ouvindo. O homem então apareceu nos fundos da casa. Estava com muita raiva e esmurrou uma arvore próxima a porta. Nós ficamos muito sem graça e saímos dali. Logo ficamos sabendo através das conversas de nossas mães: Terezinha estava grávida! Gravidez naquela época era coisa de casal. Mulheres casadas e mais velhas é quem tinham o direito de falar discutir o assunto. Moças (virgens) e meninas, nem pensar! Se Terezinha estava grávida alguma coisa estava muito errada, pois ela não era casada. Como poderíamos entender? Ficamos sem entender e não comentamos o assunto. Apenas ficávamos olhando em direção à porta de sua casa na esperança de que ela nos visse e viesse nos fazer companhia e nos explicar o que estava acontecendo. Durante alguns dias não vimos Terezinha e quando ela finalmente apareceu, estava totalmente desfigurada. Tinha no olhar uma tristeza muito profunda. Um mixto de melancolia e dor. E nos olhava com tanta intensidade, sem nos dar nem ao menos um sorriso. Aliás, nunca mais a vimos sorrir. Algum tempo depois nossas mães comentaram o casamento de Terezinha. Fomos para a cerca, pois queríamos vê-la vestida de noiva. E vimos quando ela apareceu vestindo um vestido azul (esperávamos que fosse branco) mais curto na frente, pois a barriga fazia com que a cintura ficasse mais alta. O homem, o mesmo do dia da discussão também estava lá. Vestia uma camisa de seda e dava ordens tanto à Terezinha como a sua mãe. Eu, particularmente não gostava dele. Tinha cara e jeito de mau. E devia ser mau mesmo, pois fizera mal a minha amiga Terezinha. O tempo foi passando e nós, as meninas da avenida sempre na espreita. Não nos conformávamos com o que estava acontecendo com Terezinha. Seus seios estavam enormes e sua barriga também estava crescendo muito. E o pior é que ela estava cada dia mais branca e mais magra. Quase não aparecia nos fundos da casa. Acho que não saía nem mesmo para tomar sol. Com a barriga aumentando ela passou a nos observar sentada numa cadeira. Reparei que tossia muito e estava sempre com um lenço na mão que nos acessos de tosse levava à boca. Tentávamos disfarçar a nossa inquietação diante de Terezinha e quando percebíamos que ela nos observava, assumíamos ares de crianças felizes e despreocupadas. Era a nossa maneira de dizer a ela que ainda esperávamos por ela, no entanto, havia no seu olhar um que de despedida, de adeus que também nos deixava triste. Embora crianças, conseguíamos compreender que Terezinha estava sofrendo. Nossas mães tentavam nos “proteger” ocultando ao máximo as dores e infelicidades do mundo. Naquela época criança só se preocupava com coisas de criança. E nós íamos como que descobrindo, desbravando o mundo e todo o mal que nele há. Afinal, Terezinha deu à luz! Era uma menina. E nós fomos para a cerca para ouvirmos o seu choro. Queríamos ir visitar Terezinha, mas havia entre nós um código silencioso que nos impedia de transpor as ordens vigentes e invadir o mundo dos adultos. Passamos dias esperando até que Terezinha voltou a aparecer. Levamos um susto ao vê-la. A barriga havia desaparecido, mas os seios continuavam enormes. Estava muito mais magra que antes e andava com dificuldade carregando uma criança nos braços. Ao ver que nós a observávamos, abaixou a cabeça e entrou. Foi a última vez que vi Terezinha com vida. Dias depois ela faleceu tinha completado treze anos e deixava uma filha recém-nascida para que aquela velha senhora criasse. O nosso código silencioso funcionou mais uma vez e deixamos de brincar naquele ponto da cerca. Nunca sequer comentamos entre nós sobre o acontecido. Agíamos por intuição e talvez compulsão. Éramos muito meninas para entender o sentido exato daquele acontecimento, no entanto a lembrança de Terezinha ficou em nossos corações como uma menina de quem a sorte esqueceu. E ainda hoje, quarenta e oito anos depois, esses acontecimentos permanecem vivos na minha memória.