domingo, 21 de novembro de 2010

Gostar (ou não gostar) de Ler?

Tinha oito anos e com meus pais separados, estava passando uns tempos na casa da minha tia. Com medo de represálias ficava me esgueirando pela casa tentando me tornar invisível. Era assim que me protegia da broncas e dos castigos por coisas que eu não tinha feito. No quarto da frente (quarto do meu tio), havia uma coleção da revista Seleções do Readgist e que criança nenhuma podia mexer. Aliás, o simples fato de passar em frente ao quarto e olhar para dentro do mesmo, valia uma repreensão. Passava por ali de cabeça baixa, mas com o olhar enviesado namorando as pilhas de revistas. Esperava por um momento de distração do meu tio para poder pegar uma delas e ler. Mas eu sabia que se tivesse a sorte de pegar alguma, teria que ler escondido e essa era a tarefa mais difícil, já que na casa não havia lugares onde eu pudesse me esconder de verdade. A sala era espaçosa, mas era caminho para a cozinha e para o quintal. Nos quartos, criança não entrava durante o dia: quarto era lugar de dormir e ponto! Sendo assim, só me restava o banheiro. Lá era o único lugar da casa onde nós tínhamos privacidade.


Então comecei a planejar: primeiro entrar no quarto e seqüestrar uma revista (de preferência uma que estivesse mais em baixo da pilha para que ele não desse falta). Segundo: precisava entrar e sair rápido do quarto e esconder a revista em baixo da blusa. Terceira: ter aonde esconder a revista para que minha tia não percebesse e por último encontrar um local para ler sem ser vista. Para isso escolhi o banheiro, mas e aí? Como fazer para levar a revista até o banheiro? Me lembrei que minha mãe costumava esconder dinheiro nas ripas de madeira que seguravam as telhas. Entre uma telha e outra sempre havia uma quantia de que ela se servia quando era necessário. Observando o telhado do banheiro vi que havia uma grande diferença de espaço entre uma nota de dinheiro e uma revista. Mas uma coisa me chamou a atenção: o armário tosco e improvisado (onde se colocava os apetrechos de banho) poderia ser o meu esconderijo, pois ficava pendurado por um prego e com uma leve afastadinha eu tinha como colocar a revista entre ele e a parede. Resolvido o problema na teoria, parti para por em prática o meu plano. Posso dizer que o universo conspirou a meu favor e tudo saiu do jeito que eu havia imaginado. Passei a ir ao banheiro com mais freqüência e ás vezes me perdia na leitura e esquecia de sair, causando alguns transtornos para mim e para o s outros. Minha tia passou a me observar e a controlar o tempo em que eu ficava no banheiro, mas depois eu me adaptei e passei a ler por etapas e isso não foi mais problema. Adorava quando ela saía, pois eu podia ficar mais tempo na minha biblioteca particular. Durante o tempo em que morei com a minha tia pude aprimorar a minha cultura através daquela revista. Além dos artigos serem interessantes e pequenos (na maioria depoimentos) havia o resumo de um livro que estava para ser lançado. Isso sem falar nas “Piadas de Casernas” e no teste de vocabulário que muito me ajudou nas tarefas escolares. Ali pude dar asas a minha paixão por ler. Não creio que nos dias atuais uma criança goste de ler essa revista. Tenho alguns exemplares em minha casa e por mais que eu tente, ainda não encontrei entre os meus netos nenhum que desses a elas a devida atenção. Compartilho esse prazer com apenas uma das filhas. A leitura parece estar em extinção. A nova geração precisa ser estimulada. Não querem “perder tempo” com leitura e a Internet está aí para desconstruir a saga do “gostar de ler”. Novos tempos, novas possibilidades de aprendizado, novos leitores e uma nova releitura do que fomos e de quem somos. Voltar no tempo? Impossível! Aprender a ler? Imprescindível! Gostar de ler? Vai da vontade da cada um. Beijos e (crianças ???) procurem fazer bom uso da Internet.






quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dois momentos e uma vida


Aos dezessete anos, engravidei antes de me casar. Não podia deixar a gravidez evoluir. A gravidez acabaria de uma vez com o meu sonho de me tornar uma Auxiliar de Enfermagem. era um sonho pequeno, mas naquele momento era a minha única oportunidade de melhorar de vida. Minha situação era delicada e tentava de tudo para tirar o neném. Uma amiga de curso me aconselhou a tomar um vidro de um remédio muito usado pelas mulheres da época, chamado Regulador Xavier. Mas teria que ser tomado quente e de uma só vez. Assim fiz. Sabia que seria perigoso, porém no desespero em que me encontrava, não hesitei. comprei o remédio, coloquei numa panelinha para que fervesse, esperei esfriar e bebi tudo, como me indicaram. lavei a panelinha  (para que minha mãe não notasse nada de diferente na cozinha)  e deitei-me para esperar que o remédio fizesse efeito. Meu coração começou a bater acelerado ao mesmo tempo em que ia se tornando mais fraco. Fui ficando sem forças. Quis gritar e não consegui. Todos os meus músculos estavam entorpecidos. Com a respiração difícil e o corpo totalmente paralisado, eu de repente me dei conta que não estava mais na minha casa, mas deitada numa cama de hospital. Parecia ser um hospital antigo. Notei pela cor já um tanto amarelada dos azulejos que recobriam as paredes, e pelo tipo de desenho do piso. Havia dois médicos na sala em que eu estava. Não era uma enfermaria. Se parecia mais com uma sala de cirurgia, pois havia um refletor bem acima da cama onde eu estava. Eu não entendia as palavras que trocavam entre si. Mas sabia que falavam sobre mim. Eles estavam de costas para mim e às vezes um deles se virava para me observar. Eu me sentia cansada. Não sabia onde estava nem conhecia aquele lugar. Queria sentir a presença da minha mãe. Com um pouco de esforço me virei para o outro lado da cama na tentativa de me desligar um pouco da vista dos dois médicos e me assustei de verdade. Esbarrei na parede da sala onde eu dormia! Do lado esquerdo da cama estava tudo como antes. Eu estava na minha cama e na minha casa. Minha mãe costurava como de costume, em frente à janela e ouvia rádio. Bem devagar, fui virando a cabeça para o lado da cama que estava encostada a parede. Continuei a ver a sala do hospital e os médicos que me observavam e continuavam a conversar. Voltei outra vez a cabeça para o lado e minha mãe estava lá. E ela estava até cantando uma música. Alguma coisa estava errada. Se eu realmente estava na minha cama, ali do meu lado direito deveria haver uma parede e jamais uma enfermaria. E é claro que eu só poderia tirar essa dúvida se me chegasse bem para o canto da cama e me encostasse na parede. Com bastante cuidado fui me chegando para o outro lado. Os médicos continuavam a conversar e quase não olhavam para mim. Quando achei que havia espaço para sentir a parede que deveria estar ali, joguei o corpo e o susto foi enorme. A sensação de queda foi tão real que eu quase desmaiei. Olhei para baixo, e vi os pisos do chão do hospital. A cama era alta e se eu caísse com certeza iria me machucar. De repente o meu corpo esbarrou em algo sólido e frio e a cujo contato eu já estava habituada. A parede estava ali para me proteger. Me colei a parede e em pensamentos agradeci à Deus a oportunidade de ainda estar ali. Fechei os olhos e chorei em silêncio. Fiquei assim por um bom tempo. Minha mãe pensava que eu estivesse dormindo e não me incomodou. Ela nunca soube do risco que corri, nem o que eu havia feito. E eu nunca entendi direito, o que realmente aconteceu comigo naquele dia. A vida do meu bebê foi preservada e eu tive uma menina linda e saudável que apesar das dificuldades me deu muita alegria.



quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Incesto

Meu nome é Mary Jane e o que vou contar faz parte do meu passado já um tanto distante. Éramos nove pessoas. Eu e minha irmã Esther, as quatro crianças e dois rapazes que se agregaram a nossa família. Morávamos numa fazenda nos Estados Unidos. Eu estava com vinte e dois anos e Esther (minha irmã) com vinte e quatro, porém aparentávamos bem mais idade. As quatro crianças a que me referi eram nossos filhos e o pai delas era o nosso próprio pai, um homem frio e violento que também era o dono da fazenda. Ele era filho de imigrantes espanhóis e vivia na América do Norte desde criança. Era um homem moreno, alto, forte e tinha uma barriga volumosa. Falava pouco e quando se dirigia a uma de nós era sempre aos berros. Seu sorriso era sempre um mau presságio. Sabíamos que quando sorria, com certeza tinha alguma coisa em mente.
O menino mais novo Juan, tinha quase três anos e a menina mais velha, Janice já estava com doze anos. Uma das meninas, Carla, tinha seis anos e a outra, Joyce estava com sete. Eu e Esther éramos muito ligadas. O sofrimento nos unira e não fazíamos diferenças entre os nossos filhos que eram também nossos irmãos.
Nós éramos amantes do nosso pai desde a nossa adolescência. Ou melhor: desde que a nossa mãe morrera. Eu estava então com doze anos e a minha irmã com catorze. Desde então ele se apossara da nossa vida e além de nos violentar, nos proibia de sair. Não tínhamos permissão nem mesmo para ir á Igreja. Com a morte de nossa mãe e as grosserias do nosso pai as pessoas do lugar se afastaram e nós e passamos a viver completamente isoladas.

Pela força e através de ameaças ele havia nos tornado suas amantes e tanto eu como minha irmã nos tornamos reféns de seus instintos. Sem nenhuma experiência eu ajudei no parto de Esther. Ele ficou do lado de fora do quarto e gritava me dizendo tudo o que eu devia fazer.
—Sua mãe teve vocês duas sozinha em casa e eu ajudei. Sei muito bem com se tira uma criança de dentro de uma mulher!
Quando, meses depois chegou a minha vez, Esther me ajudou.
As crianças nasceram e estavam crescendo sem nenhum convívio com outras pessoas. Sofríamos toda espécie de abusos e éramos espancadas por qualquer motivo. As crianças sentiam medo dele e viviam a maior parte do tempo escondidas dentro do quarto.
Para melhor protegê-los nós duas ocupávamos o mesmo quarto no andar de cima e dormíamos todos juntos. Quando as crianças indagavam o porquê de não sairmos, eu dizia para elas que a nossa casa “era um grande armário de guardar pessoas”.

Janice estava ficando mocinha e por duas ou três vezes, eu o peguei olhando para ela com maldade. Numa dessas vezes ele chegou a segurar a mão dela entre as suas enquanto exibia o mesmo sorriso sórdido que costumava nos “ofertar” quando desejava uma de nós. Nenhum de nós o chamava de pai ou de avô. Ele preferia que o chamássemos pelo nome e era assim que nos referíamos a ele: Sr. Gonzalez.

Há tempos apareceram por aqui dois rapazes, que diziam precisar de ajuda. Eram jovens e o Sr. Gonzalez logo imaginou que talvez estivessem fugindo da polícia. Então, se aproveitando da situação dos dois, lhes ofereceu emprego em troca de casa e comida. Eles aceitaram e ajudavam no serviço. John cuidava do pasto e Neil ajudava nos trabalhos mais pesados dentro da casa. Eles eram tratados da mesma maneira que nós. Não tinham nenhuma regalia e eram constantemente humilhados. Ainda assim eles eram como cães de guarda e obedeciam cegamente ao Sr. Gonzalez. Com o tempo nos tornamos amigos. Eles acompanharam as nossas duas últimas gravidez e não fizeram nenhuma pergunta. Sabiam perfeitamente quem era o pai daquelas crianças. Neil ajudou Esther durante o parto do menino. Era prestativo e não fazia comentários sobre o que via.
Com eles por perto, nós nos sentíamos um pouco mais protegidas. Era uma proteção imaginária já que tanto eles como nós morríamos de medo do Sr. Gonzalez.
Agora que Janice estava se tornando uma mocinha, tudo estava querendo se repetir e nós não iríamos permitir. Então resolvemos fugir. Mas fugir era algo quase impensável. E para onde fugiríamos? Resolvemos nos arriscar a pedir ajuda aos rapazes. Achávamos que não aceitariam nos ajudar, já que, apesar de tudo, tinham o Sr. Gonzalez como seu protetor. Ainda assim resolvemos tentar. Eu fiquei encarregada de falar com Neil e Esther de falar com John. Para nosso espanto eles não só concordaram, como resolveram que iriam conosco. Disseram que também estavam cansados daquela vida.

Combinamos que Neil ficaria incumbido de preparar a carroça e deixar num ponto da cerca onde o acesso fosse fácil tanto para nós quanto para as crianças. Enquanto isso, John ficaria com o Sr. Gonzalez dentro da casa para distraí-lo e assim que todos estivessem na carroça ele viria ao nosso encontro.
Com o coração aos pulos arrumamos os nossos poucos pertences e os amarramos dentro de algumas colchas e lençóis. Precisávamos fazer tudo com muita discrição para não levantar nenhuma suspeita. Nos arrastávamos como sombra pela casa sempre vigiando para ver se ele (o Sr. Gonzáles) estava por perto e só quando não o víamos é que passávamos com algum volume.
Quando tudo estava pronto demos o sinal para Neil. Escolhemos partir antes do sol nascer. Minha irmã Esther e John levaram as trouxas e colocaram tudo na carroça. Eu fiquei encarregada de acalmar as crianças para impedir que elas fizessem barulho. O menino menor, Juan estava sonolento não entendia direito porque sair da cama se ainda não estava dia claro. Queria saber do sol. Fiquei com ele no colo cochichando coisas boas para que ele entendesse que precisava ficar em silêncio. Por fim minha irmã e Neil chegaram para ajudar a levar as crianças. Pulamos a janela da cozinha e saímos rápida e silenciosamente. Nos acomodamos na carroça olhando ansiosamente em direção a casa para ver se Neil já estava vindo. Eu estava apavorada. E se alguma coisa desse errado? De repente avistamos o Neil. Finalmente ele vinha ao nosso encontro. Estranhei a sua calma. Ele estava andando muito devagar e ficamos preocupados. Os cavalos estavam um pouco inquietos e eu temia que começassem a relinchar e o Sr. Gonzalez ouvisse. Neil se aproximou e disse que havia mudado de idéia. Não iria mais partir conosco. Ficamos sem entender. Porque essa decisão? E por que só agora?

Então calmamente ele nos explicou que seus planos haviam mudado devido a uma obra da natureza. Falou que há três dias o Sr. Gonzalez havia sofrido um derrame cerebral durante a noite. Neil o havia socorrido e ajudado durante esse processo, mas ele não queria que Neil nos contasse. Queria primeiro se acostumar com a idéia. Estava cego das duas vistas e com um dos lado do corpo paralizado. Prometeu a Neil que se cuidasse dele direitinho, teria como premio uma parte na fazenda quando ele morresse.

Enquanto Neil falava, nós olhávamos uns para os outros tentando entender. De repente as coisas se tornaram claras. Naqueles últimos dias, nós estávamos tão preocupados com a nossa fuga que nem notamos até agradecemos pela mudança de comportamento do Sr. Gonzalez. Ele estava sempre no quarto e chamando por Neil. Nos lembramos que há dois dias o Sr. Gonzalez não caminhava pela casa e isso foi primordial para que o nosso plano desse certo.

Depois dessa informação sobre o seu estado de saúde, continuamos a nos olhar sem querer acreditar.
Ficamos por um tempo ali parados vendo a nossa fuga se desvanecer. Se o Sr. Gonzalez estava realmente cego e
precisando de alguém para cuidar dele era sinal de que as coisas haviam mudado e que talvez ele já não oferecesse perigo para nós.
Por um momento meus olhos se encheram de lágrimas e apertei o meu filho Juan contra o peito. Janice me olhou como se indagasse: “E então? Vamos ou não vamos fugir?” Ester, apesar de ser a mais velha sempre esperava de mim a última resposta. Estava com a cabeça baixa e percebi que também chorava.
Neil compreendeu a nossa indecisão e disse que era para pensarmos bem. Se afastou dali nos desejando boa sorte fosse qual fosse a decisão que tomássemos.

O sol começava a despontar e os seus fracos raios iluminavam uma manhã diferente. Sentada na carroça e já sem nenhuma pressa eu procurava organizar as idéias.
Durante tantos anos nós sonháramos com uma fuga que seria para nós a libertação do jugo que o Sr. Gonzalez havia nos imposto e de repente essa liberdade estava ali à nossa frente. Viera até nós como um desígnio dos céus. Um misto de alegria e de tristeza tomou conta de mim. Olhei para Esther e sorri. Estava ali a nossa chance de voltarmos a ser uma família. Acho que ela entendeu o meu pensamento porque sorriu também. John nos olhava de soslaio. Talvez ainda esperasse pela ordem de partida, mas ao ver a nossa cara de contentamento, tratou de nos ajudar a descer. Sabia que íamos voltar para casa. As crianças estavam sem entender e tanto eu como Esther tentávamos passar para eles o nosso estado de espírito atual que era de alegria e total confiança no futuro. Aos pouco fomos levando nossas tralhas para dentro de casa. Com a doença do Sr. Gonzalez as crianças poderiam dali por diante, circular pela casa sem medo. O dia nos encontrou com o coração ardendo de fé na vida e em nós mesmos.
Neil nos recebeu com alegria. Ele e John nunca haviam se separado e ele estava feliz pela decisão que havíamos tomado.
John foi o primeiro a falar e o fez de uma maneira soberba:

— Felizes pelo dia de hoje e quem sabe? Feliz para todo o sempre?

Todos sorrimos. As crianças estavam pela primeira vez na vida fazendo algazarra e preenchendo a casa com suas vozes. Nossa mãe, com certeza se estivesse conosco estaria feliz.

Ganho de Causa

A imprensa estava toda à postos. O grande homem público Richard Novaes estava depondo e assim que o seu depoimento terminasse, ele sairia e todos (inclusive eu) queriam ter o privilégio de ouvir de sua boca alguma declaração, além de tirar algumas fotografias. A criança (que era o pivô daquela história) estava presente e bem protegida das vistas dos curiosos ao lado dos seus pais biológicos e certamente guardada por algum Conselheiro. Tutelar. Também estavam ali o advogado de defesa dos pais do menino e aquele era o depoimento mais importante e mais esperado daquele caso. Depois que Richard fosse ouvido o processo ganharia outro rumo. Dizia-se à boca pequena que o juiz estava propenso a lhe conceder terminantemente a guarda do menino. No entanto, havia ainda a possibilidade (mesmo que remota) da criança ser entregue de uma vez por todas aos pais.

O caso de Richard se tornara público quando o pai do menino fez uma denúncia contra o ele, o ilustre Promotor Richard Novaes. Contou que trabalhava como porteiro no edifício onde Richard residia e que o mesmo costumava puxar conversa com ele do tipo: “Tudo bem com o senhor? E a família?” Nesses momentos ele se sentindo importante em ser notado por um homem tão importante, resumia em poucas palavras a situação em casa. Falava sobre a mulher e até lhe contava sobre as pequenas desavenças que tinham de vez em quando. A mulher estava grávida e o seu temperamento mudava com muita facilidade. Quando o seu filho nasceu ele comentou com o Promotor. Fez questão de enfatizar a cor branca do filho e os cabelos loiros que o menino herdara da mãe. Por ser de origem negra e de pele escura, o fato do filho ter nascido branco era para ele algo com que falava com orgulho. Ficou surpreso quando o Promotor lhe disse que gostaria de ver o seu filho e muito mais surpreso ainda quando Richard se ofereceu para ser o padrinho da criança. Depois de conversar com a mulher, Romualdo aceitou a oferta e dali em diante o Promotor passou a dar as cartas na vida dele, na vida da sua esposa e também na vida do menino. Dizia a eles tudo o que fazer no que se referia a criança. Até mesmo o nome do menino foi ele quem escolheu. Aliás “sugeriu” que o menino deveria se chamar Ricardo, que era a versão em português de Richard. Romualdo já havia escolhido para o filho o nome de Ernesto (que era o nome do seu falecido pai) mas achou que não seria bom contrariar o Promotor e concordou. O batizado de Ricardo foi numa manhã de domingo na igreja mais chique do bairro. O padrinho chegou num carro importado e fez questão que a cerimônia se desenrolasse o mais rápido possível, pois tinha um compromisso de última hora. Apesar de tudo, a mãe do menino estava feliz. Se sentia importante por ter como “compadre” um homem como o Promotor Richard. As opiniões e orientações e interações de Richard na vida do casal se tornaram tão freqüentes que aos pouco o jogo mudou e era ele, o Promotor, quem dava as ordens: “Não! Não façam isso! Isso não é bom para o menino”, ou então: “Sim, sim, isso é bom para a criança, etc.

Richard vivia sozinho. Não tinha filhos, estava separado da esposa e apenas os criados lhe faziam companhia. Em geral seus empregados eram diaristas ou temporários. Richard não gostava de se prender a ninguém. Assim podia curtir com mais prazer a sua liberdade.

Para que o menino pudesse passar dias em sua casa o Promotor contratou uma babá. A visita do menino acontecia com freqüência e sempre com o consentimento dos pais. Quando retornava para a casa de origem o menino ia coberto de brinquedos. Além de tudo o Promotor “sutilmente” ofertava ao pai uma pequena ajuda em dinheiro: “È para que não falte nada ao Ricardo.” Para Romualdo não se sentir constrangido Richard passou a pedir que Romualdo assinasse vez por outra uma promissória com a quantia que estava doando. Procurava deixar claro que isso era apenas uma pequena formalidade e que as promissórias jamais seriam cobradas.“É para o compadre se sentir melhor...” e enfatizava: “Com dinheiro a gente não deve brincar!”

Quando o menino completou três anos o padrinho pediu ao pai para deixar a criança passar uns dias com ele numa casa de veraneio que possuía, e o casal mesmo sem saber onde ficava essa tal casa, mais uma vez concordou. No dia combinado o motorista pegou a criança cedo como de costume. Segundo ele o Promotor não pudera vir por estar numa reunião. Era uma quinta feira, véspera de um feriadão e o menino só retornaria no domingo. Os pais se despediram do menino sem saber que nunca mais veriam seu filho. No prédio, Romualdo trabalhava tranqüilo. Várias famílias haviam viajado e tudo estava na mais perfeita paz, até que um dos vizinhos ao passar por ele, perguntou: “O senhor por acaso sabe para onde o seu compadre, o Promotor Richard se mudou?” Romualdo pensou não ter ouvido direito e pediu ao vizinho que repetisse a pergunta. Só então se deu conta do peso daquela informação. Sentiu um começo de pânico, mas pensou: “Calma Romualdo. Se o Compadre se mudou com certeza vai entrar em contato com você para lhe informar. Quem sabe até já entrou em contato com Maria?”

O dia se tornou pesado e difícil de passar. Ao chegar em casa Romualdo esperou que Maria lhe desse a notícia que confirmaria a sua idéia inicial. Porém o tempo passava e nada. Maria falava sobre tudo, menos sobre a mudança do compadre. Romualdo resolveu continuar em silêncio. Não queria preocupar a mulher e estava cansado. “Quem sabe amanhã ele não entra em contato com a gente e tudo se esclarece?” Dormiu um sono inquieto com muitas voltas na cama e idas à geladeira. Estava ansioso e mal se continha em esperar o novo dia chegar. O dia chegou e a noite também sem que ele tivesse notícias do Promotor. Só restava aguardar o domingo. E Romualdo, apesar da insegurança e do mau presságio, aguardou. No domingo tomou o café da manhã ouvindo os planos da mulher em relação a chegada de Ricardo. “Sabe que ele vai vir cheio de histórias pra contar, né?” Romualdo saiu sem responder. Precisava trabalhar. No prédio alguns dos vizinhos já haviam retornado e quando passavam por ele sempre diziam algo sobre a mudança inesperada do Promotor. Romualdo sorria engasgado. Estava com um enorme nó na garganta e se esforçava para ser gentil com todos. Deixou o emprego no horário costumeiro e se dirigiu para casa a passos lentos. Se as coisas fossem do jeito que ele estava pensando, estaria enrascado. Como contar a Maria? Tentou se manter calmo e ao chegar em casa, fingindo despreocupação foi logo dizendo: “Cadê o moleque do papai?” Maria respondeu em tom apreensivo: “Pois é homem. Até agora não chegaram. Será que aconteceu alguma coisa. Algum acidente na estrada ou coisa parecida? E você? Lá no prédio ninguém falou nada?”

Romualdo procurou ajuda nos braços do sofá. Afundou a cabeça nos ombros e começou a chorar. Maria não entendia, ou melhor, não queria entender. Começou a gritar com Romualdo: “O que aconteceu com nosso filho? Fala homem pelo amor de Deus? Ele morreu? È isso que você não quer me contar? Fala!”

Maria gritava e batia em Romualdo. Estava totalmente descontrolada. Romualdo precisou usar a força para que ela lhe ouvisse. Com a voz embargada ele lhe contou sobre a mudança do compadre e a desconfiança que tinha de que não veriam mais o menino. Maria não queria ouvir. “Não! Não! Isso não era possível! Ninguém ia fazer isso com o seu menino! Ninguém!”

A partir daí a vida deles mudou radicalmente. De tanto importunar os vizinhos do Promotor no prédio em que trabalhava, e de faltar ao trabalho com desculpa de estar procurando o filho, Romualdo foi demitido. Maria por sua vez tentava obter ajuda na Associação de Moradores do bairro em que morava, porém poucos queriam ouvir sua história. Muitas vezes ao invés de consolo ela ouvia recriminações: “Quem mandou dar o filho pra rico batizar? Agora agüente. Pensa que vai se dá bem e se ferra. É bem feito!”

Romualdo sem trabalho e sem noção de direitos vagava sem rumo ora aqui, ora acolá em busca de alguém que lhe dissesse o que fazer. Um dia numa fila em busca de emprego conheceu um rapaz que era irmão de um redator de um desses jornalecos populares. O rapaz lhe orientou no sentido de procurar o Conselho Tutelar da região onde morava, mas Romualdo tinha medo. “Como procurar a justiça para falar contra um dos seus membros tão importante? E dizer que o menino havia saído de casa com o seu consentimento?”

Preferiu uma segunda opção que era contar a sua história diretamente ao redator do jornal. Caso ele se interessasse, a notícia se espalharia e talvez assim Romualdo tivesse algum retorno. Deu a Romualdo um cartão com o nome e o telefone do escritório do irmão e depois de dois dias de indecisão Romualdo resolveu procurar o mesmo. O rapaz era novo na profissão e se sensibilizou com o sofrimento de Romualdo. Sabia perfeitamente a pressão que teria de agüentar se resolvesse ajudar aquele homem e publicar sua história. No entanto, seu lado solidário falou mais alto e ele se tornou o alicerce de Romualdo na busca que fazia para descobrir o paradeiro do seu filho. A notícia logo tomou vulto e todos os jornais falavam sobre o caso que achavam escabroso. Romualdo foi tachado de louco, oportunista e caluniador. Recebeu ameaças diversas, mas insistia em contar a sua versão da história. Para piorar a situação soube que o promotor Richard Novaes estava fora do país e não se tinha notícias dele. Poucos meses depois o caso já havia caído no esquecimento. A busca de Romualdo durou cerca de dois anos. De repente tudo voltou à tona. Através de uma denúncia anônima o paradeiro do Promotor foi descoberto. Ele não estava fora do país, mas residindo numa pequena ilha no nordeste, afastado de tudo e de todos. A denúncia pôs lenha na fogueira e o caso se reacendeu. Richard foi encontrado e intimado a depor. Se dizia inocente e não se negou a prestar depoimento. Tinha (segundo dizia) em suas mãos um documento com a assinatura de Romualdo permitindo que Ricardo vivesse em companhia do padrinho por tempo indeterminado. Documento esse que foi anexado ao processo e que seria ferozmente analisado por peritos para que fosse atestada a sua autenticidade. A versão de Romualdo sobre o caso era tênue demais comparada com as provas apresentadas por Richard. A justiça foi rápida e enquanto esperava-se pelo veredicto final, a criança foi devolvida ao convívio dos pais. Infelizmente Romualdo não conseguia êxito na sua defesa. A Justiça e a mídia os tachavam (tanto ele como a esposa) de monstros oportunistas. Tudo o que dizia se voltava contra ele e sua esposa. “Como puderam permitir que o filho fosse usado em causa própria?” Richard estava radiante. De réu passara a vítima e ainda podia requerer a posse da criança. Foi então que ele entrou com uma ação onde pedia ao Juiz para adotar o menino, afinal, preenchia todos os requisitos necessários.

Enquanto isso Ricardo e os pais tentavam da melhor maneira possível conviver em harmonia. O menino, já com cinco anos e acostumado a ter tudo do bom e do melhor não se adaptou a vida que os pais levavam. Segundo ele a casa em que moravam era pequena e feia e a vida ao lado dos seus pais era ruim. Queria ter o pai Richard de volta. Enquanto a papelada rolava na justiça. Richard (por ser um grande conhecedor da lei e dos seus meandros) se armava de todos os recursos para ter o seu pedido de adoção aceito pelo Juiz. Nas declarações que dava à imprensa sempre enfatizava o sofrimento pelo qual a criança estava passando e continuava afirmando ser verdadeiro o documento de posse assinado por Romualdo. Entre provas e contra-provas o julgamento estava chegando ao fim e nós, repórteres ávidos por notícias, ali estávamos à espera de uma solução para o caso, solução essa que provavelmente estava preste a acontecer. Enfim o Promotor saiu. Usava como sempre o seu sobretudo estilo inglês e andava com passos firmes e seguros. Enquanto os repórteres se aglomeravam tentando obter o melhor ângulo para um clipe e esticavam desajeitadamente as mãos com os seus respectivos microfones para captar alguma declaração, ele se virou, deu alguns passos em direção a criança, pegou o menino pela mão e saiu em grande estilo enquanto acenava para a imprensa. Como declaração disse apenas:

—Esta era uma causa ganha!

O menino ao se sentir seguro pela mão do Promotor, abriu um largo e radiante sorriso de contentamento e seguiu ao seu lado. Assim como o seu pai quase adotivo, olhava para os repórteres com um semblante de total felicidade. Do outro lado e bem afastados estavam os pais biológicos de Ricardo acompanhados por um Conselheiro e pelo Advogado de Defesa de ambos. No olhar da mãe a dor e a desesperança de quem acaba de perder um tesouro. Com um terno e forte abraço Romualdo tentava ampará-la enquanto seguiam para o carro que deveria ser do advogado e que com certeza os levaria de volta para casa.

Tudo parecia estar terminado, no entanto o meu olhar atento havia captado algo no sorriso daquele menino que talvez tenha passado desapercebido aos meus colegas. Ele já era presa do Promotor por seu próprio consentimento e nada do que dissessem ou fizessem mudaria esse quadro.

Isto, num tempo de guerras e caos era algo para ser pensado. Até onde aquele homem influenciara aquele menino e quais seriam os seus motivos reais naquela relação? Ele era um homem quase quarentão e a pedofilia andava muito em voga. Era mais uma questão que ficaria sem resposta. O homem rico e poderoso que se apossa de uma criança inocente e “compra” o seu afeto com brinquedos e bens de consumo. É provável que se os verdadeiros pais ganhassem esta causa teriam ao seu lado, não um filho, mas um quase inimigo que na primeira oportunidade iria ao encontro daquele homem que o havia seduzido.