quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Vidas em Tempo de Guerra


A pequena estação de trem estava superlotada. O cenário era caótico. Pessoas se aglomeravam e se espremiam carregando dentro de malas ou em trouxas os poucos pertences que conseguiam carregar enquanto aguardavam a chegada do trem que nos levaria para outra cidade.

A guerra havia chegado e havia em todos os rostos um que de preocupação.

Soldados fardados por todos os lados conferiam documentos e intimidavam as pessoas com o olhar.

A perseguição aos judeus era ferrenha e nesse clima de insegurança, partir era o melhor a fazer.

Eu estava ao lado da minha filha mais velha que tinha acabado de completar dez anos de idade. Era uma menina calada e reservada. Meu marido um pouco afastado de nós segurava pelas mãos os nossos gêmeos de cinco anos. Os meninos usavam calça curta de veludo marinho com suspensórios de couro, camisas brancas, de pala rendada e boinas também marinho. Olheio-os com orgulho. Eram crianças lindas e bem cuidadas. Meu marido usava uma jaqueta de couro e uma boina xadrez. Olhei para ele de soslaio quando vi que o trem se aproximava.

Meu coração estava aos pulos. Até agora tudo estava dando certo, mas a incerteza e a insegurança bailavam nem minha mente. Ele acreditava que se a nossa viagem desse certo, poderíamos recomeçar a vida em outro lugar.

O trem parou e as pessoas começaram a entrar no mesmo. Todas pareciam ter pressa e isso dificultava um pouco a subida dos passageiros. Busquei os olhos do meu marido. Precisava da sua ajuda, mas ele insistia em ficar separado de nós duas. Estava com muito medo e as pernas fraquejavam. Ele percebeu a minha hesitação e fez um sinal discreto para que eu entrasse no trem. Entendi e obedeci ao seu comando. Ainda arrisquei um novo olhar, mas com a aglomeração que se formou perdi meu marido e os meninos de vista.

Tomei coragem, agarrei com força a mão da minha filha e assim que apareceu uma brecha entramos no trem. Os bancos estavam quase todos ocupados. Avistei um banco vazio e empurrei minha filha até lá. Sentamos e ficamos aguardando por ele. O banco onde estávamos sentadas ficava de costas para a porta de entrada e eu tinha que me virar de vez em quando para ver se ele já estava vindo. O vagão foi ficando lotado. Muitas pessoas estavam em pé e eu estava com medo que retirassem a minha filha do banco para dar lugar à outra pessoa. Eu era uma mulher medrosa e se isso acontecesse eu não saberia dizer não.

O trem apitou e percebi que estava prestes a sair da estação. Meu coração se apertou. Onde estava o meu marido com os meninos? Por que demorava tanto em aparecer? Minha filha me olhou e no seu olhar vi que também estava apreensiva com a demora do pai. Olhei mais uma vez para trás e enfim, reconheci a boina do meu marido enquanto ele passava por entre as pessoas. Ele procurava por nós, olhando de banco em banco. Acenei com a mão e ele me viu. Sorri para ma minha filha e esperei. Nisso ele chegou. Se postou ao nosso lado, ou melhor, à nossa frente e eu senti um baque forte no coração. Ele estava sozinho! Os meninos, os meus gêmeos não estavam com ele. Minha filha me olhou espantada. O seu olhar de indagação se cruzou com o meu e eu me senti desfalecer. Ele me olhava com seu olhar frio e implacável. Fiz menção de me levantar, mas ele com firmeza pôs o braço em meu ombro e me obrigou a continuar sentada, enquanto permanecia de pé aparentando total indiferença a minha reação. Minha filha se apoiou no meu ombro.

O trem começou se movimentar e mais uma vez olhei para ele suplicante. O olhar que me devolveu era gelado e eu não consegui esboçar nenhuma reação. Desde o nosso casamento, era ele quem dava as ordens. O seu modo rude e violento haviam me tornado escrava da sua vontade. Estava acostumada a obedecer cegamente àquele homem que um dia havia me escolhido como esposa. Ao seu lado minha vida era um eterno penar. Jamais me atreveria a discutir ou a contrariar aquele que era o pai dos meus filhos. Os poucos momentos felizes que tinha era através do amor incondicional que sentia pelos meus filhos. Ser separada de dois deles seria a morte para mim. Estava ciente de que não poderia fazer cena ou drama, pois corríamos o risco de sermos descobertos. Então, abaixei a vista e puxei o ar para respirar. Meu coração se apertava e eu me desfazia em lágrimas invisíveis. Abracei minha filha e percebi que ela sentia o mesmo que eu, mas ela também não chorou.

Fizemos toda a viagem abraçadas, cabisbaixas e em silêncio. Eu não tinha outra alternativa senão continuar calada. Engoli as lágrimas que teimavam em sair dos meus olhos e permaneci em silêncio. Evitava olhar para o meu marido, pois naquele momento a minha vontade seria estrangulá-lo. A dor que estava sentindo me dava forças e eu sentia a fúria me dominando. Senti vontade de gritar para que todos pudessem ouvir:

—Ouçam todos vocês! Nós somos judeus! Estamos fugindo e passando por alemães!

Seria aminha forma de castigá-lo, embora também estivesse me castigando. Mas não podia fazer isso. Precisava pensar na menina. Ela não tinha culpa do que estava acontecendo, era uma vítima como eu e merecia uma chance.

A dor que sentia era tão grande que eu pensei que fosse morrer ali, naquele momento.

Descemos numa estação que parecia ser menos povoada que o lugar de onde vínhamos. Ali também havia alguns guardas armados, mas não nos importunaram. Saímos da estação e seguimos por uma estrada de barro. Ao lado havia um terreno cercado onde havia uma plantação de beterrabas. Caminhávamos em silêncio. O meu coração estava apertado. O nó na garganta fazia com que minha respiração continuasse difícil. O coração estava terrivelmente apertado.

Minha filha até ali não dissera uma palavra. Andava ao meu lado com os olhos fitos no chão. Eu estava cansada e ao mesmo tempo arrasada. Me sentia inútil como mãe e como mulher. Que espécie de mãe era eu? Que poderia oferecer àquela menina que caminhava ao meu lado, se não conseguia defender nem mesmo a mim? Num certo ponto da estrada meu marido parou. Usando uma das malas como assento retirou de dentro do casaco um pacote de fumo e um cachimbo que depois de acender se pôs a fumar.

Depois das primeiras baforadas abriu o fecho do casaco e retirou de dentro do mesmo umas peças de metal que ao se encaixarem formavam uma espécie de espingarda que escondeu entre os nossos pertences.

Só então pareceu reparar em nós e falou sobre os meninos. Com a frieza que lhe era peculiar, pediu para que eu entendesse os seus motivos. As crianças ao nosso lado só iriam atrapalhar! Agora estavam seguras e em boas mãos. Haviam sido entregues a um casal alemão que não possuía filhos. Certamente seriam criados como alemães e não teriam que se esconder como nós. Apertei minha filha contra o meu peito e choramos as duas. Ele continuou a fumar o seu cachimbo e assim que terminou continuamos a caminhada. Algum tempo depois, chegamos a um pequeno armazém. Meu marido se adiantou e foi falar com o homem que parecia ser o dono do lugar enquanto eu e a menina esperávamos do lado de fora. Ouvi quando o homem gritou:

—Saiam já daqui seus judeus ordinários! Não quero complicações com a polícia! Se pensam que vão me enganar se deram mal. Não quero em minhas terras cães sarnentos por perto. Então retirou de baixo do balcão, uma arma e ameaçou atirar no meu marido ali mesmo. Meu marido veio ao meu encontro e apressados nos afastamos.

Ele estava visivelmente transtornado com a acolhida daquele homem. Cabisbaixo e carrancudo ele nos conduzia por aquela estrada sem destino aparente. A incerteza, a insegurança e a nossa vulnerabilidade estavam ali à nossa frente. Éramos foragidos e mais cedo ou mais tarde nos encontrariam. Olhei em volta em busca de algum lugar onde pudéssemos nos esconder no caso de o homem nos perseguir. Avistei um galpão e nos encaminhamos para lá apressadamente.

O galpão estava vazio e entramos sem dificuldades. Forrei alguns panos para nos servirem de cama e nos deitamos. Enquanto ele e menina ressonavam eu amargava a dor da perda dos meus dois filhos. Abraçada ao pano que me servia de travesseiro derramei em silêncio todas as lágrimas que trazia comigo. O dia nos encontrou exaustos famintos e temerosos. No olhar do meu marido a arrogância estava se desvanecendo. Seu semblante abatido me dava a certeza de que a nossa fuga havia fracassado e que em breve seríamos presos e teríamos que cumprir o nosso destino.

Procurei me enfeitar. Penteei e prendi os cabelos. Precisava estar bonita para enfrentar o que estava vindo. Ajeitei também os cabelos da minha filha. Ela também precisava estar bonita, afinal éramos mulheres e mulheres são as flores do mundo! Pelo menos era isso que o meu falecido sempre dizia.

Meu marido não percebeu o brilho dos meus olhos nem o sorriso nos meus lábios. Estava entretido fumando o seu cachimbo e não olhava para nós duas. Sabia que estavam à nossa procura e logo nos encontrariam.

Foi então que ouvi os latidos dos cães. Olhei mais uma vez para minha filha e sorri. Queria que ela se lembrasse desse momento com alegria e ofertava a ela o pouco de felicidade que ainda existia em mim. Os latidos dos cães ficavam cada vez mais próximos e a nossa prisão era apenas uma questão de tempo.

Sentamos, nos demos as mãos e ficamos ali abraçadas.

Meu marido já não fazia parte do nosso mundo. Ele agora era apenas uma sombra encurvada e sem expressão.

Enquanto os cães se aproximavam eu sorria e olhava nos olhos da minha filha. Em minha mente apenas uma certeza: Em breve eu deixaria este mundo e fosse qual fosse a maneira pela qual eu iria morrer, eu estava feliz. Minha vida (enfim) chegaria ao fim!

Os soldados chegaram e nos encontraram assim. Bonitas, felizes, seguras e sorridentes.