Leonardo
era um menino diferente dos outros. Tinha um comportamento exemplar. Na escola
era muito bem quisto pelos professores e suas notas eram excelentes. Era
incapaz de participar de brincadeiras violentas. Falava pouco e nunca dizia
palavrões. Estava com nove anos e era
adiantado para a sua idade. Na igreja que freqüentava na companhia de sua mãe
era o menino mais elogiado de todos. Apesar disso tudo Leonardo não tinha um
bom relacionamento com as outras crianças de sua idade. Não se misturava com nenhuma
delas. Estava sempre só ou acompanhado da mãe. Quando o tempo estava bom ele
gostava de ficar em cima da laje com um livro evangélico e um caderno onde vez
por outra fazia alguma anotação. Era bastante estudioso e isso talvez fosse o
motivo do seu isolamento. As crianças não gostavam muito dele, porém aos
adultos parecia que isso se devia ao fato de sentirem ciúmes ou inveja de sua
sabedoria.
David,
um menino que morava numa rua paralela a sua, costumava também subir na laje, porém
por outro motivo. David gostava de soltar pipas e em cima da laje era mais
excitante. Mesmo sem o consentimento da mãe, David continuava a praticar o seu
esporte favorito naquele lugar perigoso. Vez por outra observava Leonardo
sentado ao lado da caixa-d’água (que o protegia do sol) escrevendo por tardes
inteiras e ficava curioso. O que será que Leonardo tanto tinha para escrever?
Um dia, David percebeu que Leonardo havia descido e esquecido o caderno que
tanto lhe causava curiosidade. Desceu rapidamente da laje, subiu no muro e procurando
se equilibrar o mais que podia, pulou para o quintal de Leonardo. Sorrateiramente
subiu até a laje e pegou o caderno. Desceu rapidamente e do mesmo modo que
havia feito para chegar até lá, seguiu em direção a sua casa. Foi direto para o seu quarto e colocou o
caderno em baixo do colchão. Bebeu um pouco de água para se acalmar e subiu
novamente na laje. Enquanto dava linha em sua pipa viu Leonardo que procurava o
caderno de um lado para o outro. Abaixava, levantava e algumas vezes chegou a
olhar com certa desconfiança em direção de David. Esse por sua vez, fingia
estar entretido com a pipa e não notar o que se passava na laje de Leonardo.
Por fim cansado de procurar pelo caderno, Leonardo desceu. David continuou na laje por mais um tempo e
só desceu quando sua mãe o chamou para o banho. Depois do banho David foi para
o quarto com a desculpa de que tinha dever de casa para fazer. A mãe
desconfiou, mas aceitou. David se preocupar em fazer o dever da escola sem ser
preciso ela mandar era uma grande novidade. David pegou o caderno e assim que
começou a ler o que estava escrito se assustou. Achou que não estava entendendo
muito bem as coisas que ali estavam escritas. As anotações tinham marcações
datadas (dia, mês e ano) e falavam, ou melhor narravam uma gama de más ações
cometidas por Leonardo e que causariam espanto em qualquer pessoa que as lesse.
Para piorar, as narrativas eram repletas de palavrões e desenhos obscenos onde
a figuras celestiais ganhavam chifres e rabos e se tornavam demônios. Anjos demoníacos,
Jesus efeminado e cruzes de formatos estranhos assustavam David que ainda era
criança (estava com doze anos) e não tinha uma percepção muito aguçada. Devido a isso David precisava ler várias vezes
certos trechos, para que entender o seu verdadeiro significado. Depois de um
tempo, David percebeu que tinha em mãos um verdadeiro tesouro. Através daquele
caderno Leonardo o menino “bonzinho” da turma poderia ser desmascarado. Estava
tão entretido na leitura que não percebeu a entrada de sua mãe e quase desmaiou
tamanho foi o susto que levou ao ouvir sua voz.
Sua
mãe ao vê-lo com o caderno fez questão de saber o que havia ali de tão
interessante e ficou muito surpresa com tudo o que leu. As narrativas de
Leonardo eram minuciosas e se referiam a fatos reais acontecidos na comunidade.
Eram fatos graves e alguns até de grande relevância já que trouxeram danos a
suas vítimas. Coisas como a queda de uma menina da escada da escola. A menina
havia se machucado bastante e ainda hoje estava sem poder assistir as aulas
devido a pancada que levou na cabeça. Ali Leonardo se dizia autor da façanha e
contava tudo. Viu quando a menina passou em frente a sua sala na direção do
banheiro das meninas e imediatamente pediu licença a professora para ir ao
bebedouro. A professora consentiu e ele
rapidamente se aproveitando que o corredor estava vazio colocou o pé na frente
da menina para que ela caísse.
A
mãe de David se lembrou que a menina insistiu em acusar Leonardo, porém ninguém
acreditou nela, afinal Leonardo havia saído da sala “apenas para ir ao
bebedouro” e voltara antes que os gritos da menina fossem ouvidos. Leonardo também
se gabava de ter produzido o curto-circuito que queimara vários instrumentos na
igreja e quase resultara num incêndio de graves proporções. Sem que ninguém
percebesse ele havia entrado na sala onde os instrumentos estavam, desligara a
chave e trocara várias pernas dos fios. Quando os jovens que faziam parte da
banda chegaram para o ensaio e ligaram a chave geral da sala aconteceu o
curto-circuito. Também a gata da dona Cleyde, que aparecera morta tinha sido
obra dele. Comprara chumbinho num camelô e com muito cuidado jogara um pedaço
de carne impregnada de veneno para o animal. Foi ele também quem quebrara a
cabeça do menino mudo da outra rua com uma pedrada certeira. A mãe de David
também se lembrava do incidente e de como a mãe do menino viera até a casa de
Leonardo para se queixar e de como a mãe dele e até mesmo os vizinhos não
acreditaram nela. Daí a fora muitas e
muitas ações em que o autor não havia sido descoberto, eram sim, obras de
Leonardo. E ele fazia questão de relatar os fatos com todas as artimanhas que
havia usado para se camuflar e se proteger. Havia ainda os casos em que ele
ofendia, xingava e até batia nas crianças e se saía ileso se fingindo de
inocente graças a sua reputação de menino exemplar. Corroborando tudo isso havia os desenhos
pornográficos onde imagens celestiais e demoníacas representavam membros da
igreja.
A
mãe de David (depois de pensar um pouco) resolveu que levaria o caso ao
conhecimento da Associação de Moradores para que fosse avaliado. Não era justo
que as crianças do lugar, vítimas de Leonardo passassem por mentirosas. Assim
pensou e assim o fez.
O
presidente da AM se encarregou do resto. Levou o caderno até o Pastor da Igreja
que a mãe de Leonardo freqüentava pedindo que ele tomasse alguma providência.
As mães das crianças da localidade exigiam uma retratação por parte de sua
genitora. Quando a mãe de Leonardo soube de tudo o que o seu filho andava
aprontando teve uma crise de hipertensão. Era separada do marido e cuidava
sozinha de Leonardo sempre pensando que ele acatava os seus ensinamentos.
Leonardo foi terminantemente proibido de sair de casa e o seu pai foi avisado
do que estava acontecendo. Aliás, a mãe acusava o pai pelo comportamento
estranho do filho.
O
pai de Leonardo há muito tempo não aparecia. Se sentia triste e desmotivado.
Tinha um filho que era quase um gênio e não tinha como corresponder ajudando
nos estudos do menino. Sempre que aparecia era bombardeado com as boas notas no
boletim e os planos da mãe para que o menino estudasse num colégio melhor.
Assim que chegou estranhou, pois além da ex-esposa estavam presente o Pastor da
Igreja e uma das professoras. Com muito tato lhe mostraram as anotações do
menino e ele então ficou sabendo do comportamento real do seu filho. Pela
primeira vez o pai de Leonardo se sentiu aliviado. Olhava para Leonardo como se
o estivesse vendo pela primeira vez. E refletia: durante tanto tempo ele
julgara estar diante de um gênio e no entanto ali estava o seu filho. Igualzinho
a ele. Sem mais e sem menos. O mesmo instinto malvado que ele tinha na infância
e que fizera com que fosse tão severamente castigado por seu pai. O seu filho
era mais sutil é verdade. Havia descoberto uma maneira de enganar as pessoas e
por isso não recebia castigo nenhum. Sim. Isso era coisa de gênio. Mas agora as
coisas iam mudar. Sem deixar que percebessem as suas verdadeiras intenções, se
levantou e agradeceu a todos pela notificação. Assim que o Pastor e a
professora saíram ele disse a ex-esposa:
—Olha,
eu sei que isso tudo é demais para o menino e queria que você deixasse ele
passar uma semana comigo. Ele está crescendo e a gente precisa se conhecer um
pouco mais.
A
mãe, pensando no bem do menino resolveu concordar. Seria bom ele se afastar um
pouco da comunidade. Desde que o seu caderno viera à tona, a sua imagem ficara
um tanto manchada. É. Seria bom para ele ficar uns dias com o pai.
Leonardo
arrumou suas roupas, colocou na mochila e se despediu da mãe. De mãos dadas com
pai seguiu em direção ao ponto de ônibus. Nem por um momento passou pela sua
cabeça que estava sendo levado para uma verdadeira “clinica de recuperação”.
Seu pai conhecia métodos tão eficazes de tortura que seriam capazes de fazer
uma verdadeira modificação no seu comportamento. Seus métodos eram bem
parecidos com os de Leonardo e isso era o que mais lhe instigava. Tinha
absoluta certeza de que quando Leonardo voltasse, seria o menino bonzinho que
tanto lutara para parecer.
Uma
semana depois ao voltar para casa Leonardo aparentava ser o menino de sempre.
Falava pouco, não se misturava com as outras crianças e por mais que sua mãe
indagasse não contava nada do que havia acontecido nos dias em que ficara na
companhia do pai.
A
mãe desconfiou que algo não ia bem, mas não teve como provar nada.
Algumas
pessoas notaram o olhar diferente de Leonardo que ao passar por elas procurava sempre
abaixar a cabeça. As outras crianças já podiam brincar e passar perto dele sem
medo, pois ele nem sequer as notava. Mas o que ninguém percebeu é que Leonardo
estava se tornando um menino autista. Aos pouco estava perdendo a capacidade de
se sociabilizar com o mundo exterior.
Seu
pai continuava a levá-lo para passar dias em sua companhia e agora sim, se
orgulhava de verdade do comportamento do filho.
Seu
baixo rendimento escolar, e sua deficiência só foram notados muito tempo
depois.
Mas,
quem iria reclamar disso, se a paz reinava naquele lugar?